Sei que este texto é extenso, mas não seria possível reduzir esse assunto à poucos versos. Leia, pense e comente. Vale a pena!
A violência está presente em nosso cotidiano – inclusive assumindo formas dissimuladas. Ela reina na periferia das grandes cidades, envoltas numa guerra civil diária não assumida pelas autoridades; ela é prevista e legitimada no poder político, isto é, constitui uma das funções do Estado, mesmo o democrático. Qual Estado pode abrir mão do recurso da coerção e de todos os meios necessários para forçar os cidadãos a obedecer a ordem dominante?
Tudo isso parece não existir para determinados indivíduos que vivem no mundo das nuvens e reduzem as contradições sociais à eterna luta do bem contra o mal. Como que num transe coletivo, mas que paradoxalmente objetiva a salvação individual, estes guardiões da moral e dos bons costumes adotam uma postura apolítica e voltam-se para o intimismo. São profetas bem intencionados que constroem a cidade de Deus, isto é, cuidam das suas almas. As questões sociais que assolam este país passam ao largo. Sobram discursos que garantem audiência e, por trás da histeria coletiva e individual, cada um busca sua própria salvação, ainda que afirmem amar ao próximo! Eles se aglomeram e oram, mas se limitam ao individualismo egoístico espiritualizante.
Ledo engano! A individualização das soluções para problemas terrenos, sociais, econômicos e políticos, deslocados para um plano transcendental e intimista também cumpre um papel político: alivia a pressão e funciona como uma espécie de anestesia coletiva. Afinal, este intimismo religioso não questiona a realidade social desigual e desumana, nem inquire sobre os responsáveis por tal situação. Induz ao conformismo! Que se entregue à divindade o bônus e o ônus! Ele assim o quis, assim o será! Que as coisas permanecem como estão; a nossa recompensa está no além. Essa mensagem de resignação é mais antiga do que parece. [4] Ontem como hoje, os poderosos agradecem a tais profetas.
Eis como a religião no mundo atual adentra na política: afastando-se desta ou procurando instrumentalizá-la em nome de uma moral fundamentalista. Esta postura individualista e/ou conservadora é a resposta aos que vêem na religião uma força que deve se aliar à política para construir o reino de Deus aqui na terra, mas numa perspectiva coletivista e que pressupõe uma opção política pelos pobres e oprimidos.
O senso comum diz que religião e política não se discutem. Pelo contrário, precisamos refletir sobre a relação entre violência e política e, por outro lado, entre estas e a religião. Um simples olhar sobre a história da humanidade evidenciará a simbiose existente entre política, religião e violência. Como podemos esquecer, por exemplo, a barbárie dos ‘santos inquisidores’ de ontem e de hoje, uns em nome de Deus, outros em nome da razão do Estado? E o horror da noite de São Bartolomeu? Que seria dos conquistadores da nossa América se não utilizassem os recursos da Santa Madre? Seria a violência política suficiente para subjugar os povos dessas terras? E não foi a religião o cimento ideológico que justificou barbaridades como a escravidão do negro e a submissão secular da mulher? O puritanismo protestante foi empecilho para a dizimação dos povos indígenas na América do Norte? E as risíveis cenas, se não fossem trágicas, de religiosos, de um e outro lado, santificando exércitos em guerra?
Gostemos ou não, política, violência e religião entrelaçam-se em diversos contextos históricos. Há mesmo determinadas circunstâncias onde estão de tal forma amalgamados que é difícil distinguí-los. Assim, a luta entre o Parlamento e a Coroa inglesa no século XVII parece, ao estudioso desavisado, simples disputa religiosa entre puritanos, anglicanos e católicos. O mesmo podemos observar quanto ao conflito histórico entre protestantes e católicos na Irlanda e entre palestinos e israelenses no oriente médio. Em ambos os casos, fatores político-sociais secularmente sedimentados e influenciados pelas mudanças na política internacional produziram realidades complexas com problemas aparentemente insolúveis fora do recurso à violência. E mesmo quando busca-se uma solução pacífica, resultante das pressões políticas internas e externas dentro de uma nova realidade internacional, a violência não está descartada. E tudo parece uma disputa religiosa...
Os exemplos são muitos. Podemos encontrá-los inclusive em nossa história. Para não nos alongarmos, lembremos apenas que nossa frágil democracia conheceu poucos períodos onde pôde desenvolver-se pacificamente. Na República Velha, a oligarquia cafeeira tratou a questão social como caso de polícia e teve que enfrentar a revolta armada da classe média da época: o movimento tenentista. Esse movimento gerou a ‘Revolução de 30’, um ato violento que, entre outras coisas, fecundou o Estado Novo. Na ditadura estadonovista de Vargas, cristãos que simpatizavam com os americanos ou com os nazi-fascistas se uniram contra o inimigo comum, identificado com o próprio demônio na terra: o comunismo. A política, de novo, recorreu aos valores morais-religiosos para justificar o regime de exceção e a repressão.
Na segunda metade dos anos 40 tivemos a ilusão democrática da legalidade para os comunistas. Parecia então que o demônio fora exorcizado. Sabemos o final desta história: nova onda repressiva, ilegalidade, clandestinidade. A democracia da guerra fria, em nome da liberdade e dos valores democráticos, inverte a ordem dos valores: antidemocráticos são os outros, os comunistas. Dessa vez, porém, não precisou recorrer à religião (pelo menos não diretamente).
Em 1964 a religião foi novamente utilizada na cruzada contra os esquerdistas — o que na época significa avanços das lutas dos trabalhadores. As madames católicas saíram às ruas em marcha fortalecendo a base social golpista; a cúpula da Igreja silenciou e/ou apoiou os golpistas. Mas, também é verdade que setores minoritários dessa mesma Igreja adotaram uma postura corajosa e favorável aos explorados e oprimidos, contra o golpe militar, pela democracia e por uma sociedade justa e igualitária. De qualquer forma, política, violência e religião mesclam-se.
Política e violência unem-se ainda na resistência ao golpe. De um lado a repressão militar, as torturas, os desaparecimentos de filhos e filhas da nossa terra; de outro, a ilusão de que o povo enfrentaria em armas a ditadura militar impulsionado pelo exemplo da sua vanguarda. Às mães e pais desses jovens que sucumbiram nas garras do aparato repressivo estatal e paraestatal restaram a dor e a triste realidade de quem nem tem o corpo querido sobre o qual chorar. Para os que professam a fé restava o consolo da religião.
A democracia que temos foi regada com sangue. Não podemos esquecer o passado. Temos a obrigação de legar às futuras gerações uma história que, quando muito, é tratada nos livros e bancos escolares. Lembremos dos que, com erros e acertos (mas só erra quem age) dedicaram a vida ao povo, ao sonho de uma vida melhor para os excluídos da cidadania. Ontem tratados como terroristas, hoje como subversivos e outros epítetos. Seus nomes são vários. Lembremos de dois: Carlos Marighella, assassinado pela ditadura em 04 novembro de 1969; e, Santo Dias, assassinado pela polícia sob o governo Maluf em 30 de outubro de 1979. Um, guerrilheiro e comunista; outro, operário metalúrgico, militante da Pastoral Operária. Eis a política, a violência e a religião em ação...